Afinal, o Espiritismo tem tríplice aspecto?
Por Ronaldo Fontela
Comumente vemos a opinião quase unânime dos espíritas e das instituições máximas que os representam (as Federações) dizendo que o Espiritismo se divide em 3 aspectos: CIÊNCIA, FILOSOFIA e RELIGIÃO. E o mais contraditório é que apesar de se declararem Kardecistas, dizendo seguirem fielmente a doutrina publicada por Allan Kardec, colocando-o como se fosse insuperável, na prática não é bem assim. Vejamos como Kardec definiu o Espiritismo.
“O ESPIRITISMO É, AO MESMO TEMPO, UMA CIÊNCIA DE OBSERVAÇÃO E UMA DOUTRINA FILOSÓFICA. COMO CIÊNCIA PRÁTICA ELE CONSISTE NAS RELAÇÕES QUE SE ESTABELECEM ENTRE NÓS E OS ESPÍRITOS; COMO FILOSOFIA, COMPREENDE TODAS AS CONSEQUÊNCIAS MORAIS QUE DECORREM DESSAS MESMAS RELAÇÕES.” (O que é o Espiritismo, preâmbulo-1859)
Como podemos observar, ele não qualificou o Espiritismo como sendo religião, e isto em toda a sua trajetória, pois JAMAIS ele mudou de postura. Alguns alegam que ele muda, quando publica seu último discurso em 1868. Porém apenas se usarmos de recorte, pois o contexto do texto deixa claro que sempre foi mantida a mesma opinião. Vejamos as citações, primeiramente, a que “sustentaria” que é religião:
“Se é assim, perguntarão então o Espiritismo é uma religião? Ora, sim, sem dúvida, senhores! No sentido filosófico, o Espiritismo é uma religião, e nós nos vangloriamos por isto, porque é a Doutrina que funda os vínculos da fraternidade e da comunhão de pensamentos, não sobre uma simples convenção, mas sobre bases mais sólidas: as próprias leis da Natureza.” (Revista Espírita, dez. 1868, O Espiritismo é uma religião?).
“Por que, então, temos declarado que o Espiritismo não é uma religião? Em razão de não haver senão uma palavra para exprimir duas idéias diferentes, e que, na opinião geral, a palavra religião é inseparável da de culto; porque desperta exclusivamente uma idéia de forma, que o Espiritismo não tem. Se o Espiritismo se dissesse uma religião, o público não veria aí mais que uma nova edição, uma variante, se se quiser, dos princípios absolutos em matéria de fé; uma casta sacerdotal com seu cortejo de hierarquias, de cerimônias e de privilégios; não o separaria das idéias de misticismo e dos abusos contra os quais tantas vezes a opinião se levantou.
Não tendo o Espiritismo nenhum dos caracteres de uma religião, na acepção usual da palavra, não podia nem devia enfeitar-se com um título sobre cujo valor inevitavelmente se teria equivocado. Eis por que simplesmente se diz: doutrina filosófica e moral.” (Revista Espírita, dez. 1868, O Espiritismo é uma religião?)
Não é difícil perceber, e principalmente para quem ler todo o artigo, que a proposta sempre foi a mesma, porém ele apenas reforça, explica melhor a proposta espírita. O Espiritismo (digo o de Kardec) sem dúvida tem o intuito de estimular a fé, a religiosidade, visto que tinha por objetivo combater o materialismo, que seu oposto é o espiritualismo, do qual o Espiritismo pertence. Logo não podemos separá-lo completamente das religiões, porque ele estudou justamente o produto das ideias religiosas (alma e Deus), o que não significa ser uma religião propriamente dita, são coisas distintas, embora inseparáveis. Pela imensa lucidez, Kardec nunca errou gravemente na estruturação da ciência espírita, sempre foi consciente das dificuldades, das próprias diferenças da ciência convencional e da que ele construiu, portanto, quem estudar todas suas obras depreende isto, ele próprio salientava.
Finalmente, ele sempre negou ser religião, porque no sentido usual da palavra, ela requer toda uma estrutura de instituições, hierarquias, cultos, que inexistem na doutrina espírita. Quanto ao afirmar positivamente, era devido ao estudo etimológico da palavra religião, que vem do “religare”, em latim, e quer dizer “laço”, conforme podemos ver na citação abaixo, parágrafo que no original antecede a primeira citação contida neste texto.
“O laço estabelecido por uma religião, seja qual for o seu objetivo, é, pois, um laço essencialmente moral que liga os corações, que identifica os pensamentos, as aspirações, e não apenas o fato de compromissos materiais que podemos romper à vontade, ou da realização de fórmulas que falam mais aos olhos do que ao espírito. O efeito desse laço moral é o de estabelecer entre as pessoas que ele une, como consequência da comunhão de vistas e de sentimentos, a fraternidade e a solidariedade, a indulgência e a benevolência mútuas. É nesse sentido que também se diz: a religião da amizade, a religião da família.” (Revista Espírita, dez. 1868, O Espiritismo é uma religião?)
Observação, “moral” neste caso quer dizer “espiritual” e não no sentido de “ética”, na França, no século XIX era comum usar esta palavra equivalendo a espiritual, antônimo de material. Com isso, acho que fica evidente a questão do tríplice aspecto, pois esta ideia se desenvolveu no Brasil. Para Kardec jamais houve tríplice aspecto. Por quê? Porque por definição é impossível uma mesma coisa ser ciência e religião, e imagino que Kardec conhecia isso, logicamente. Vejamos algumas características de cada:
Religião: Por definição é INCONTESTÁVEL, pois vem de Deus, e como Deus não erra, logo não há o que discutir, surgem novas denominações dissidentes porque interpretam diferentemente a mesma coisa, mas não questionam a fonte, ou seja, o conteúdo da informação. Vem de cima para baixo, através de profetas que são algumas pessoas com o dom de ouvir ou ser inspirado por Deus.
Ciência: Por definição é CONTESTÁVEL, não existe ciência se alguma experiência, teoria, artigo ou hipótese não for passível de contestação, ao contrário, para se considerar algo bem consolidado somente após passar por críticas.
Pronto, definimos a questão do século XIX, mas isto encerra a questão? Não, pois assim como Kardec criou a palavra “Espiritismo” (e outras decorrentes) para não haver problema de anfibologia (duplo sentido), que todas as palavras sofrem com o passar do tempo, porque se agregam novos significados, hoje esta mesma palavra já há mais sentidos. Atualmente a palavra “Espiritismo” também significa religião, logo a palavra por si só já causa polêmica entre os adeptos que não consideram o Espiritismo DE KARDEC como religião. E olha que até agora não saí da fonte, pois se complica a situação se acrescentar as obras de J. B. Roustaing, Chico Xavier etc. Pois elas apresentam todas as características de religião, no seu sentido usual mesmo. E agora, o que fazer? Brigar como doido tentando restabelecer o sentido do século XIX? Brigar até com o dicionário? Fazer obras literárias, instituições, movimentos para “derrubar” que Chico Xavier não é Espiritismo? Não, a meu ver todas estas tentativas são inúteis, inviáveis. E o que fazer então, se é que podemos fazer algo? Penso que a única alternativa viável é esclarecer, pois a ignorância dentro do movimento espírita é enorme, mesmo entre dirigentes. Muitos desconhecem profundamente a parte doutrinária, e principalmente a parte histórica de cada Espiritismo, sim, isto mesmo que falei, de cada Espiritismo. O renomado filósofo Mario Sergio Cortella foi criticado por alguns espíritas ao declarar no Faustão: “Isso variará do tipo de prática de Espiritismo que se tem”, mas é isso mesmo, existem diferenças capitais. A luta dos que, como eu, simpatizam com a ciência espírita de Allan Kardec e não creem totalmente na religião espírita de Chico Xavier e demais autores e simpatizantes que usam o querido Chico como paradigma, não é a de mudar a deles nos baseando em raciocínios, argumentos, fundamentados na própria codificação, é sim apenas de esclarecer, mostrar que os autores são distintos NA FORMA DE CONSTRUÇÃO das doutrinas; um foi científico, outro religioso, mas que visavam o mesmo objetivo.
Outra coisa importante que deve ser esclarecida, que a maioria dos adeptos ou simpatizantes desconhecem, é que o Espiritismo brasileiro é dissidente do “Kardecista”, e não o contrário; o que quero dizer com isso? É que ninguém é menos espírita por discordar do movimento espírita, ou de médiuns como Chico Xavier e Divaldo Franco, pois o paradigma, a premissa é a escola Kardeciana. Felizmente há os mais sensatos que vem se separando, como a “Conscienciologia” e o “Cristianismo Espírita”, penso ser este o caminho. Alguns podem refutar, mas ao invés de unir quer separar, contrariando mesmo a codificação? Sim, pois visto que sempre foram separados e sequer sabiam. Acho mais produtivo cada grupo que diverge muito em ideais se separar e conviverem mais fraternalmente, até interagindo, do que ficarem debatendo doutrinas, inutilmente. Pois espírita que é espírita jamais irá interferir no catolicismo, por exemplo, pois são distintos, já com a mesma denominação isso não vale, afinal, instituição que se declara espírita está sujeita à crítica dos espíritas que pensam como eu (como pensava o codificador).
Concluindo após esta explanação, respondendo a pergunta do título, não acho que seja possível o tríplice aspecto, considerando religião no sentido usual. Porém, não nego a existência da religião espírita. Uma vez que na Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas havia médiuns de várias crenças diferentes, por que não seria possível hoje trabalharem conjuntamente os dois tipos de adeptos espíritas, os da ciência e os da religião espíritas? Por ignorância das diferenças, não se resolve um problema enquanto não o identificamos. Mas já que não nego a existência da religião, da filosofia e da ciência espíritas, por qual razão nego o tríplice aspecto? Pela simples razão que não podemos misturar ciência e religião, por definição. A filosofia será sempre comum a qualquer grupo, porém, os que fazem e seguem a religião não aderem à ciência, e vice-versa. O fator primordial do erro de construção no Brasil foi simplesmente o erro de definição e de nomes, em minha opinião é impossível negar as diferenças, e sem entrar no mérito de valores, não há certo ou errado, existem dois grupos diferentes com o mesmo nome (e olha que Kardec lutou para isto não acontecer), troca-se o nome de uma delas, e penso ser a obrigação da religião espírita (FEB e Cia), em respeito à linguagem e pela precedência da ciência, e terminará o problema de grandes divergências doutrinárias. A história do Espiritismo brasileiro prova que foi até necessidade a criação da religião, porque seus adeptos sofriam perseguições. Por fim, avalio que não há tríplice aspecto, existem sim duas escolas de pensamentos com 2 aspectos cada, tendo o filosófico como denominador comum. Ou é ciência e filosofia, ou é religião e filosofia. Como saber qual sua predileção? Fica fácil um auto diagnóstico, se você sempre sujeita todo ensino à análise, independente de quem assine a mensagem e de qual médium escreveu, você segue a ciência. Já se acredita piamente em algum ensinamento, porque é de um determinado espírito ou médium, e sequer admite que critique seu conteúdo, você segue a religião. Já não se trata mais de quem está certo ou errado, afinal são coisas diferentes que não podem ser mescladas, se trata de discernir uma da outra e resolver o único problema existente, o MESMO NOME.
Abaixo deixo minha sugestão de vídeo a assistir, de um grande estudioso do Espiritismo, o Cosme Massi, que a meu ver expõe brilhantemente a proposta de Allan Kardec, recomendo este canal, que não é de sua responsabilidade, mas que posta algumas de suas palestras.
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