COMO O ESPIRITISMO VÊ A QUESTÃO DA CATÁSTROFE DE BRUMADINHO?
Após a tragédia de Brumadinho, muitos espíritas têm se preocupado em argumentar sobre a questão da justiça divina do sofrimento coletivo. Há em Allan Kardec, contudo, outra questão importante que ele trata na Lei de Destruição (O Livro dos Espíritos), quando pergunta aos Espíritos sobre os flagelos (no sentido de catástrofe, dano coletivos): o progresso dos homens, em especial o progresso da sociedade.
Por progresso, nesse caso, não entendemos um crescimento a partir de um sofrimento depurador, mas uma mudança de mentalidade, conhecimentos e ações coletivas para evitar no futuro novas catástrofes.
Na questão 741, Allan Kardec pergunta se é possível ao homem afastar os flagelos e os Espíritos respondem que muitos deles “resultam da imprevidência do homem”. É o que nos parece ter acontecido nos casos de Mariana e Brumadinho-MG. Duas semanas após o rompimento da barragem de rejeitos que gerou a desencarnação violenta de muitas dezenas de pessoas na cidade próxima à capital mineira, os meios de comunicação têm dado voz a especialistas que apontam formas alternativas de lidar com os rejeitos, tecnologias de prevenção da ruptura das barragens, problemas da legislação referente à fiscalização do estado das barragens de contenção, entre outras questões.
A ruptura da barragem de Mariana foi uma catástrofe que, se tivéssemos, como sociedade e órgãos de Estado, levado à sério, teria o papel de promover avanços capazes de evitar ou minimizar em muito os danos da ruptura da barragem 1, de Brumadinho. Uma questão que não sofreu avanços e tem sido questionada é o próprio sistema de fiscalização das barragens no qual o fiscal é ao mesmo tempo prestador de serviços diretamente contratado pela empresa mineradora, e que poderia ter sido solucionado com uma mera alteração legal.
Os Espíritos dizem a Kardec: “À medida em que adquire conhecimentos e experiência, ele pode afastar, isto é prevenir, se souber pesquisar suas causas.”
Kardec ainda comenta: “... Entretanto, não tem o homem encontrado na Ciência, nas obras de engenharia, no aperfeiçoamento da agricultura, nos afolhamentos e nas irrigações, no estudo das condições higiênicas, meios de neutralizar, ou pelo menos de atenuar, tantos desastres? Certas regiões, outrora assoladas por tantos flagelos, não estão hoje livres deles?”
Esperamos que o segundo e mais grave episódio de ruptura de barragens faça acordar a população brasileira, e, em especial, a nós espíritas, para realizarmos o que é necessário: acompanhar as mudanças que evitarão ou pelo menos atenuarão novos incidentes capazes de ceifar vidas, destruir comunidades e deixar consequências no meio ambiente que talvez afetem a um grande número de seres vivos por um grande período de tempo.
30.1.19
KARDEC, A ALMA DO MUNDO E O PANTEÍSMO
Como bom pedagogo, ao escrever seus livros para o grande público, Allan Kardec discutiu com os espíritos muitos tópicos da filosofia antiga e de sua época, sem ficar citando os autores. Alguns conceitos, hoje esquecidos, deviam ser muito conhecidos no meio intelectual francês do século XIX, e vez por outra, ao pesquisar as origens, esbarro em algum filósofo importante.
Em sua primeira publicação espírita, Kardec apresenta rapidamente o conceito de “alma do mundo” – “âme du monde” (O Livro dos Espíritos, questão 144), afastando a ideia de que os planetas são seres viventes, como pensava, por exemplo, Orígenes, em seu “Tratado sobre os princípios”, no século III.
O dicionarista Ferrater Mora explica que o conceito de “alma do mundo” está em Platão, como uma “mescla harmoniosa pelo demiurgo das ideias e da matéria”. É bem possível que Kardec tenha usado o termo platônico para questionar aos Espíritos, uma vez que ele considera Platão e Sócrates como precursores do cristianismo e do espiritismo.
No capítulo XI de A Gênese, Kardec refere-se a um conceito semelhante, o de “alma do universo” (A Gênese, capítulo XI, parágrafo 28), em francês, “âme de l’univers”.
Heráclito fala de uma “alma do universo”, que é um “todo homogêneo” para onde volta a alma humana após a morte, perdendo sua individualidade e tornando-se homogênea.
Baruch Spinoza (século XVII) entendia Deus como sendo a “alma do universo”, no sentido que era o “mecanismo imanente da natureza”, ou seja, Deus é a natureza. Trata-se de uma concepção panteísta.
Allan Kardec, contudo, deixa claro que o espiritismo não é panteísta em seu texto “As cinco alternativas da humanidade”, publicado em Obras Póstumas. É um texto que não se encontra na Revista Espírita, no período em que Kardec foi seu editor, deve ser, portanto, um texto do final de vida.
Spinoza é considerado o “monista por excelência”, porque entende que tudo é uma única substância: Deus, o universo e o ser humano. Kardec, contudo, posiciona-se como dualista ou trinitário (trindade universal), uma vez que entende que há dois princípios ou substâncias, o material e o espiritual, e “acima de tudo Deus”, cuja natureza (essência, substância) diferiria do espírito e da matéria. (O Livro dos Espíritos, questão 27)
O monismo de Spinoza pode ser lido em seu livro "Ética demonstrada à maneira dos geômetras". Na proposição XVI encontra-se a concepção de Deus como infinito, que resultaria na concepção de Deus como um intelecto infinito e causa primeira. (corolários I e III).
Há uma conexão entre o racionalismo de Descartes, Spinoza e a metafísica de Allan Kardec.
Há uma conexão entre o racionalismo de Descartes, Spinoza e a metafísica de Allan Kardec.
24.1.19
A COMUNICABILIDADE DOS ESPÍRITOS É UMA PREMISSA METAFÍSICA NO ESPIRITISMO?
Mais recentemente, com o retorno da filosofia ao ensino médio brasileiro e a ampla difusão das obras de Allan Kardec, com iniciativas como as da FEB e do Instituto de Pesquisas Espíritas Allan Kardec (IPEAK), têm surgido novos debates com base em leituras, não apenas das obras básicas do fundador, mas também da Revista Espírita, no período em que ele era o editor (1858-1869), que contém contribuições que deixam mais claros alguns pontos do pensamento espírita.
Vi por esses dias um debate sobre os princípios a partir dos quais o espiritismo foi elaborado. Na filosofia, esses princípios podem ser ideias consideradas corretas (premissas ou postulados) ou justificadas racionalmente. Já os dogmas, embora tenham o sentido original de premissas de sistemas filosóficos na antiguidade, acabaram por ser entendidos como pontos de vista indiscutíveis sobre os quais se fundam as religiões, especialmente a partir do cristianismo medieval.
Um ponto aparentemente óbvio, mas que foi e parece que continua sendo fonte de debates, diz respeito à existência e comunicabilidade dos espíritos. É uma premissa adotada por Kardec como verdadeira e indiscutível (dogma) ou é o resultado de uma cuidadosa observação de fatos?
Na Revista Espírita de abril de 1869, encontra-se um artigo curioso, intitulado "Profissão de fé espírita americana", onde possivelmente Allan Kardec comenta uma publicação do jornal Salut, de New Orleans, de 1867, no qual se divulgam os resultados de um congresso espiritualista norte americano. O evento gerou uma "profissão de fé" dos espiritualistas dos Estados Unidos, e Kardec destaca as muitas semelhanças entre pontos de vista e as muito poucas diferenças. Como foram movimentos desenvolvidos separadamente, Kardec argumenta como um ponto favorável ao espiritismo.
Uma questão que ele destaca em seus comentários é a da origem da proposição da comunicabilidade dos Espíritos no espiritualismo e no espiritismo. Lê-se abaixo:
Cabe lembrar também que não se trata de crença ingênua, porque Allan Kardec examinou as diferentes formas de explicação dos fenômenos estudados, como se pode ler no capítulo IV da primeira parte de O Livro dos Médiuns (Dos sistemas), verificando a capacidade explicativa de cada um deles e delimitando os fenômenos que só seriam devidamente explicados pelas comunicabilidade dos Espíritos.
Camille Flammarion não ficou satisfeito com este trabalho de Allan Kardec e continuou estudando empiricamente os fenômenos atribuídos aos Espíritos de forma geral. Publicou em 1865 o livro "As forças naturais desconhecidas", no qual analisa e considera verdadeiros diversos fenômenos estudados, mas ainda não conclui pela indubitabilidade da comunicação dos espíritos. Essa conclusão veio em 1922, quando publicou o terceiro livro de "A morte e seu mistério".
Vê-se, portanto, que seria um erro entender que o Espiritismo propõe a comunicabilidade dos Espíritos apenas como ideia ou princípio metafísico, mas que se trata do resultado de observações de fenômenos psicológicos (ou parapsicológicos, como queira o leitor) e que não nega a possibilidade de outras explicações, exigindo do seu observador uma análise cuidadosa para não levar "gato por lebre", ou seja, não confundir com as produções do inconsciente, com a imaginação ativa, com a fantasia, fraudes intencionais ou não e outras explicações possíveis.
11.1.19
O PADRE QUEVEDO E A PARAPSICOLOGIA
Oscar Quevedo
Desencarnou no dia 9 de janeiro de 2019 o Padre Oscar González Quevedo Bruzán, jesuíta conhecido pelo emprego de ideias parapsicológicas em articulação com sua fé católica. Quevedo foi crítico a-priori das ideias espíritas, e teve muitos interlocutores em nosso movimento, como Carlos Imbassahy, Herculano Pires e outros. Um exemplo é o livro A farsa escura da mente, escrito por Imbassahy para discutir o livro "A face oculta da mente" publicado pelo jesuíta.
O site G! assim apresenta Quevedo:
"Natural de Madri e naturalizado brasileiro, Padre Quevedo é considerado um dos maiores especialistas do mundo na área de parapsicologia e autor de dezenas de livros, muitos dos quais traduzidos para outras línguas, como "O que é parapsicologia", "A Face Oculta da Mente" e "As Forças Físicas da Mente". Além de parapsicologia, era formado em filosofia, teologia e humanidades clássicas."(https://g1.globo.com/mg/minas-gerais/noticia/2019/01/10/corpo-de-padre-quevedo-e-enterrado-em-belo-horizonte.ghtml)
Ao procurar o nome de Quevedo, contudo, na base Periódicos Capes, uma das usadas para a pesquisa em milhares de revistas científicas, inclusive do campo da parapsicologia, encontrei apenas uma citação em um texto de um parapsicólogo, membro da Parapsychological Association, nos Estados Unidos, que diz:
"Outro exemplo mais extremo é a parapsicolgia-baseada-no-catolicismo desenvolvida por Oscar González Quevedo, um parapsicólogo e jesuíta espanhol que vive no Brasil." Alvarado discute a questão do critério de demarcação entre o sobrenatural (influência direta de Deus no mundo) e dos fenômenos de percepção extra-sensorial como propriedades da alma (não perceptíveis organicamente), bem como a recomendação do religioso de não se desenvolverem fenômenos psíquicos. Outra crítica de Alvarado é o não desenvolvimento de pesquisa empírica pelos seguidores de Quevedo, baseando sua produção apenas no que já foi publicado.
Outras reticências são propostas ao trabalho de Quevedo, e Alvarado assim conclui sua argumentação:
"Felizmente para o futuro da parapsicologia no Brasil, essa forma arcaica do campo está rapidamente em declínio".
(Alvarado, Carlos S. Reflections on being a parapsychologist. The journal of parapsychology, v. 67, fall 2003, p, 211-148)
Respeito a fé do padre e compreendo sua dedicação à igreja, à qual se ligou desde a adolescência. Gostaria de externar aos familiares e aos amigos dele, meus sentimentos nesse momento de perda da presença da pessoa que lhes foi importante.
Publico esse texto em um momento sensível, talvez inoportuno, para questionar a imagem projetada por um dos meios de comunicação mais influentes em nosso país, apresentando uma segunda visão, produzida por um especialista reconhecido no campo da parapsicologia na atualidade.
8.1.19
COMO FOI E VEM SENDO CONSTRUÍDO O MOVIMENTO ESPÍRITA NO ESTADO DE SÃO PAULO?
Recebi da USE-SP, ano passado, esse livro que é um trabalho de recuperação da memória da instituição.
O organizador, Rubens Toledo, deixa ao leitor um texto fácil de ler, que vai apresentando uma linha do tempo que vai do surgimento do Espiritismo no Brasil, passando pelos congressos, decisões e eventos que constituíram a USE. É uma história interessante de se ler, os olhos de um mineiro, porque o estado de São Paulo teve pelo menos quatro instituições disputando a representatividade das casas espíritas.
O texto é ilustrado, e reconhece desde pessoas famosas no movimento, como Herculano Pires, até outros trabalhadores que dedicaram-se sem notoriedade pública, realizando atividades que devem ser feitas sem muita exposição ao público.
Não é uma narrativa chata, daquelas de listas de nomes e datas infindáveis, que após dez minutos de leitura não se tem nada em mente. Rubens conseguiu dar protagonismo aos espíritas paulistas e paulistanos, e àqueles que, mesmo sendo de fora, passaram a participar da comunidade espírita de São Paulo. O leitor vê as coisas acontecerem, as instituições se formarem, os presidentes e seus projetos, as realizações em nascimento, curso e, às vezes, morte.
A segunda parte do livro trata das regionais, descrevendo-as e fazendo justiça ao que fizeram mais recentemente.
Vivemos um momento em que há muitas críticas pessoais e mal fundamentadas, dirigidas às casas espíritas, de dentro do próprio meio espírita. Críticas voltadas mais ao culto do ego do crítico que às reformas institucionais, por vezes necessárias. Algumas são pessoais e ferinas, outras sem fundamento que não a opinião pessoal ou eventos reais isolados, tratados como se fossem regra. Críticas vazias de evidências, arrogantes...
A contribuição desse tipo de trabalho não deve ser subestimada, mas devidamente examinada e valorizada. Quiçá difundida por outras regiões do Brasil e do exterior.
Título: USE 70 anos: Passado, Presente e Futuro em Nossas Mãos
Organizador: Rubens Toledo
Edições USE
Junho de 2017
304 p.
21.12.18
DOIS INDÍCIOS DA IDENTIDADE DE BEZERRA DE MENEZES NO LIVRO "DRAMAS DA OBSESSÃO"
A expulsão dos judeus em 1497
Estamos estudando o livro “Dramas da Obsessão”, ditado pelo Espírito Bezerra de Menezes a Yvonne Pereira. Como a leitura é feita aos poucos em nosso grupo de estudos (um pequeno capítulo por sessão), conseguimos observar alguns detalhes que geralmente escapam a uma leitura do livro como romance apenas.
A trama do romance, desde o início, remete o leitor ao livro “A Loucura sob Novo Prisma”, publicado postumamente. Nesse livro, o médico cearense defende a tese da existência de pessoas avaliadas como loucas por médicos da época, que na verdade sofreriam apenas a obsessão espiritual (provocada por espíritos inferiores). A história, que parece ter origem em fatos reais, trata de suicidas que foram levados ao ato por obsessão espiritual.
Durante a narrativa se descobre que os obsessores do livro haviam sido convertidos compulsoriamente ao cristianismo no século XVI, e depois torturados e mortos apenas por terem fortuna, sob o pretexto de cultuarem sua religião em segredo.
Na narrativa, Bezerra mostra como eles foram obrigados a adotar nomes cristãos após a conversão. O rabino Timóteo Aboab passou a ser chamado de Silvério Fontes Oliveira, seus filhos Joel, Saulo e Rubem, tiveram que adotar os nomes de Henrique, José e Joaquim, respectivamente.
Nas páginas 66 e 67 da minha edição, Bezerra traça uma explicação sobre o significado hebraico dos nomes da família, voltando até mesmo à descendência de Israel (ou Jacó). A mudança obrigatória de nomes é, portanto, uma violência simbólica e uma tentativa de apagar as origens judaicas da família.
Curiosamente, Bezerra faz um comentário muito relevante, relacionado a este fato:
“Nestas páginas, não obstante, continuaremos a tratar nossas personagens pelos seus nomes de origem, uma vez que, liberais que deveremos ser, respeitaremos o direito que eles têm, ou quem quer que seja, de se nomearem conforme lhes aprouver.”
Por isso, ele continua chamando os autores com seus nomes hebraicos durante a narrativa.
Vemos, portanto, que o autor espiritual admite a influência das ideias liberais, que ele defendeu pela política quando estava encarnado. Bezerra era político do partido liberal, na segunda metade do século XIX. Embora pontual, não deixa de ser uma marca de identidade do autor.
O tema do livro, como uma ilustração de uma tese que ele quase defendeu quando encarnado[1] e sua identificação com as ideias liberais, são dois pontos que trazem a marca de Adolfo Bezerra de Menezes no livro ditado a Yvonne Pereira.
[1] Segundo Luciano Klein Filho, Bezerra escreveu “A loucura sob novo prisma” para apresentar como tese no Congresso Espírita e Espiritualista Internacional em Paris-França, em 1900, mas desencarnou antes do evento.
17.12.18
JOÃO (DE DEUS?)
Apesar do uso de palavras e da imagem de pessoas do espiritismo, a instituição criada por João de Deus não leva o indicativo de espírita.
O assunto da semana em diversos círculos que frequento têm sido as acusações de assédio sexual a João de Deus. O volume de denúncias e detalhes veiculados pela mídia em geral é imenso, e é muito difícil no momento acreditar que possa ser alguma espécie de conspiração contra esse homem, ou algum fenômeno de massas. Até ontem, eram mais de trezentas denúncias vindas de diversos lugares do Brasil e do exterior. Aguardemos, contudo, a confirmação que virá pelo trabalho da justiça.
Enquanto isso, tenho acompanhado com interesse as declarações que vão surgindo, e, em paralelo a elas os comentários e opiniões dos entrevistados. É verdade que tenho ouvido muito dos católicos e evangélicos do meu círculo de conhecimentos que aquilo não se parece com o espiritismo e com os espíritas brasileiros. O espiritismo desfruta de boa reputação diante da população em geral.
Exploração da Fé
Considerando factíveis os relatos, todos se perguntam como uma pessoa conseguiu enganar a tantos por tanto tempo. Ao contrário do que pensa a coach Ammy que levava estrangeiros para Abadiânia, não se trata de doutrinação[1], mas de exploração da fé ingênua ou acrítica.
Manipulação da ignorância
Boa parte das mulheres foram atrás da faculdade de João de Abadiânia esperando encontrar uma espécie de homem-santo, um profeta, alguém que cura gratuitamente, praticante da caridade e digno de confiança. Ele se apresenta à sociedade como um médium, e se identifica com a expressão João de Deus. Como ele afirma curar, e tem uma reputação confirmada até mesmo por jornalistas mundialmente famosos como Oprah Winfrey[2], é visto também com algumas licenças que concedemos aos médicos, como o acesso ao corpo para fins de promoção da saúde.
Outra coisa que facilita a manipulação das vítimas é a imagem que se criou do Dr. Fritz, através de outros médiuns, um alemão rude, que dá ordens, desafia as autoridades presente e exige obediência, mas que no final obtém a cura. É mais uma concessão a ser tolerada na espera de um resultado que desafia as melhores práticas da medicina. É algo bem diferente da racionalidade, afetividade e respeito às pessoas, características que encontramos no espiritismo ao se referir aos espíritos superiores.
A ignorância do espiritismo age contra as vítimas. O médium acusado de assédio diz que vai fazer um “alinhamento de chacras”[3], que vai “desbloquear um chacra”, coisas inexistentes na literatura espírita, mas que são ouvidas como uma espécie de procedimento médico espiritual. Na leitura das denúncias, João parece não se preocupar, ou mais, se servir da confusão do emprego de palavras de doutrinas orientais pouco conhecidas pelo grande público para que a vítima não se assegure do óbvio: ela estaria sofrendo abuso sexual.
Outro desconhecimento do espiritismo é bem manipulado por João: a mediunidade. Mediunidade é uma faculdade, uma capacidade das pessoas em geral, independentemente de sua ética. A cura por meios espirituais na tradição judaica, no entanto, é atribuída a Deus através de seus profetas ou emissários, e na tradição cristã-católica, aos homens santos. Como João cura (e há inúmeros relatos de pacientes que não melhoraram com a medicina e que melhoram após participar das reuniões de João[4]), ele toma emprestada a “aura de santidade”, que, ante as mentes ingênuas, lhe traz uma reputação de confiabilidade. Poucos tornam públicas, contudo, das pessoas que não obtiveram melhoras orgânicas, nem do comércio que alguns denunciam existir por detrás dos grandes espetáculos públicos de mediunidade[5], tão condenados pelas instituições espíritas sérias.
Outra coisa que João consegue com mentiras é a fragilização dos vulneráveis. “Feche os olhos, porque a luz é muito forte e pode cegar”, ele diz a uma mulher. [6]
Diante de uma menor aos gritos, assustada com a óbvia violação da intimidade, João não se alteraria. Ele diz que se trata de uma obsessão e pede à sogra que a acompanhava, para não abrir os olhos[7], e, de certa forma, ignorar o pedido de ajuda da jovem.
Para quem resiste: intimidação
Uma forma de intimidação simbólica é a ameaça da volta da doença[8]. João foi acusado de fazer isso com uma mulher que o procurou com câncer de mama, como se ele tivesse o poder sobre a saúde e a doença, ou autoridade a partir de um conhecimento sobre a psicogênese das doenças.
Outra acusação de possíveis vítimas de João de Deus é a de intimidação. Na denúncia da filha, que se afirma abusada na infância, entre os dez e os quatorze anos, se encontra uma acusação de ameaça de morte[9].
A questão da reputação
Li nos relatos jornalísticos sobre o caso a alegação de medo[10], diante da reputação social que João tem, especialmente em Abadiânia, uma cidade na qual a Casa de Dom Inácio é muito influente e economicamente importante[11].
Por que não denunciaram antes?
Vulnerabilidade, manipulação da ignorância, desconhecimento do espiritismo e dos orientalismos empregados, medo, ameaças... todas essas razões e talvez outras ainda não exploradas vão criando o ambiente para que um abusador possa ter cometido com tantas mulheres, atos libidinosos não consentidos.
Mesmo ante tantas acusações, ainda não podemos escrever que João de Deus cometeu os atos descritos. Todavia, confiamos no trabalho da justiça e da polícia para avaliar os relatos, levantar evidências e esclarecer por completo o triste escândalo que envolveu um médium famoso, uma instituição percebida pela população como espírita, toda uma comunidade no interior de Goiás e pessoas vulneráveis vindas dos quatro cantos do mundo em busca de saúde e espiritualidade.
[1] https://g1.globo.com/go/goias/noticia/2018/12/08/mulheres-relatam-abusos-sexuais-do-medium-joao-de-deus-em-atendimentos-espirituais.ghtml
[2] A apresentadora manifestou-se após saber das acusações e declarou “esperar que a justiça seja feita”. (Folha de São Paulo - https://f5.folha.uol.com.br/celebridades/2018/12/espero-que-a-justica-seja-feita-diz-oprah-winfrey-sobre-joao-de-deus.shtml)
[3] https://vejario.abril.com.br/blog/beira-mar/banho-de-cristal-do-medium-joao-de-deus-conquista-elite-carioca/
[4] https://vejasp.abril.com.br/cidades/joao-de-deus-relatos-de-cura/
[5] https://veja.abril.com.br/revista-veja/a-escolha-de-rezende/
[6] https://extra.globo.com/noticias/brasil/menores-de-idade-estariam-entre-as-vitimas-de-joao-de-deus-23293609.html
[7] https://guiame.com.br/gospel/noticias/crimes-sexuais-fazem-do-guru-espiritual-joao-de-deus-o-maior-abusador-conhecido-do-pais.html
[8] https://veja.abril.com.br/brasil/filha-de-joao-de-deus-foi-vitima-de-estupro-diz-advogado-em-nota/
[9] https://veja.abril.com.br/brasil/filha-de-joao-de-deus-foi-vitima-de-estupro-diz-advogado-em-nota/
[10] https://g1.globo.com/go/goias/noticia/2018/12/08/ex-funcionaria-diz-ter-sido-abusada-por-joao-de-deus-durante-atendimentos-na-casa-dom-inacio-de-loyola.ghtml
[11]https://www.em.com.br/app/noticia/nacional/2018/12/08/interna_nacional,1011637/moradores-de-abadiania-dizem-nao-acreditar-em-denuncias-contra-joao-de.shtml
28.11.18
O EVANGELHO POR FORA?
Estive lendo o livro Hermenêutica Avançada, escrito por Henry Virkler e publicado pela editora Vida Acadêmica. O autor propõe diversos cuidados para a interpretação do texto bíblico em geral, desenvolvendo uma espécie de pequeno curso de interpretação das escrituras.
Durante o texto o autor debate a diferença entre a exegese e a eisegese. Ele afirma que o prefixo “ex” significando “fora de”, “para fora” ou “de”, significa que “o intérprete está tentando derivar seu entendimento do texto, em vez de ter seu significado no (“para dentro”) texto (eisegese)” (Virkler, 2001, p. 11)
A partir dessa leitura penso que dá para supor por que Canuto Abreu deu o nome de “O Evangelho por Fora” para seu livro, e mais especificamente para a primeira parte do seu livro. É um dos poucos livros, que trata de hermenêutica e exegese bíblicas no meio espírita.
Wilson Garcia apresenta em seu blog um livro de mesmo título escrito por Júlio Abreu Filho, mas explica que ele sucedeu a Canuto no curso de aprendizes do evangelho da FEESP. (http://www.expedienteonline.com.br/entre-tracas-poeira-e-paginas-rotas)
Wilson Garcia apresenta em seu blog um livro de mesmo título escrito por Júlio Abreu Filho, mas explica que ele sucedeu a Canuto no curso de aprendizes do evangelho da FEESP. (http://www.expedienteonline.com.br/entre-tracas-poeira-e-paginas-rotas)
Kardec emprega técnicas de hermenêutica e exegese para a interpretação dos textos do antigo e novo testamentos que encontramos em “O evangelho segundo o espiritismo”, mas não se aprofunda na técnica, e, sim, na harmonização entre o pensamento cristão e os princípios espíritas, o que pode ser chamado de exegese espírita, como bem o diz Canuto Abreu.
Quando o autor destaca que o livro aborda o evangelho por fora, estaria ensinando ao leitor os caminhos para se entender o evangelho a partir do seu próprio texto, da intenção dos autores e não para obter um apoio forçado para suas ideias pessoais (que seria, então, o evangelho por dentro).
Abreu trata de três dos sentidos empregados para interpretação, a hermenêutica e suas regras, as críticas (histórica, dogmática, racionalista, evangélica e bíblica), dos evangelhos canônicos, além de questões linguísticas e da tradição verbal. Um exemplo curioso em que emprega seus conhecimentos está na análise da palavra Evangelho e seus significados, literal, espiritual e anagógico.
Não é um livro de fácil leitura, já que foi escrito por um erudito para mostrar alguns de seus caminhos no entendimento do evangelho, mas é uma leitura importante para quem se propõe ao estudo bíblico no meio espírita.
25.11.18
O DÉCIMO SEGUNDO: UM FILME SOBRE A DOR
Acabo de assistir “O Décimo Segundo”, um filme de Cristiane Miranda que aborda a temática da escolha pelo suicídio, com uma ótica espírita.
É um filme experimental, de baixo orçamento, nada que lembre um filme hollywoodiano. O som ambiente incomoda no início, a iluminação contrasta com as imagens que parecem ser vistas pessoalmente, nos filmes profissionais, Quem assiste é remetido aos personagens e suas emoções diante de pressões do dia-a-dia. O risco de identificar-se com alguma das situações em foco é muito grande, porque os dilemas que surgem são comuns, e alguns não são atuais, mas fazem parte da alma humana.
O filme fala principalmente da temporalidade da dor. O que nos parece a destruição da vida que construímos, é apenas uma crise, um momento de transformação. Se soubermos enxergar um segundo além da crise, o suicídio se torna um ato insensato.
Cristiane inseriu muitos símbolos e sinais do espiritismo ao longo do filme, mas seus esquetes não são ideológicos, talvez cristãos (em um sentido bem amplo) porque remetem ao dilema universal da alma diante da dor.
As locações são em Belo Horizonte, o que me causa ao mesmo tempo uma sensação de familiaridade e estranhamento, porque quase nunca vemos a capital mineira e seus espaços na telona ou nas telinhas. O filme, contudo, não faz da capital mineira uma personagem, escolhe lugares que poderiam representar lugares comuns.
Pensando no público espírita, para quem escrevo, o filme é um apoio interessante para um debate sobre o suicídio, podendo ser projetado e discutido nas casas espíritas.
Uma questão permanece ao longo do filme e gostaria de compartilhar com os leitores do Espiritismo Comentado: quem é o décimo segundo?
Ficha Técnica
O décimo segundo
Roteiro e Direção: Cristiane Miranda
Música: Tim
Produção: BH Brasil
Classificação indicativa: 12 anos
Duração: 25 minutos
Áudio: Português
Onde comprar?
Livraria Ysnard Machado Ennes
Associação Espírita Célia Xavier
Rua Coronel Pedro Jorge 314, Prado - Belo Horizonte-MG Brasil
3334-5787
17.11.18
TRÊS INICIATIVAS DE RESGATE DA MEMÓRIA ESPÍRITA EM BELO HORIZONTE-MG
Nos últimos dois anos, vieram à luz três livros que tratam da memória do meio espírita em Minas Gerais.
Pelas comemorações dos 50 anos do Hospital Espírita André Luiz, em Belo Horizonte, Lucrécia Valle e Roberto Lúcio Vieira de Souza publicaram o livro “Hospital Espírita André Luiz: da revelação espiritual à prática clínica”.
O livro traz em seu corpo uma pesquisa documental e em jornais de época sobre a criação e a trajetória do Hospital Psiquiátrico desde sua concepção até a comemoração dos 50 anos de atividades.
O livro trata também do serviço de saúde do Hospital e dos avanços realizados com o passar dos cinquenta anos, na medida em que a psiquiatria e as ciências da saúde também avançavam.
O livro trata também do serviço de saúde do Hospital e dos avanços realizados com o passar dos cinquenta anos, na medida em que a psiquiatria e as ciências da saúde também avançavam.
Observa-se que o hospital é fruto do esforço de pessoas de diversos grupos espíritas da capital mineira, que se organizaram em torno do projeto de oferecer tratamento psiquiátrico e de saúde à população em situação de vulnerabilidade social. Vê-se que as lideranças que se aproximaram desse ambicioso projeto, estavam em plena atividade em seus centros espíritas e com atividades diversas, quando se depara com os dois outros livros publicados.
O Cenáculo Espírita Thiago Maior foi local das primeiras reuniões de diretoria do hospital, enquanto o terreno era adquirido, e logo após o Centro Oriente (p. 34) Juntou-se aos diretores um grupo ligado à União Espírita Mineira e a Chico Xavier: Peralva, Salvador Schembri, Osório Morais e Virgílio Almeida. Emmanuel, através do lápis do médium de Pedro Leopoldo, dá diversas orientações para o futuro hospital que vão sendo publicadas em boletins e mensagens, lidos em reuniões de diretoria. Os Espíritos Joseph Gleber e Irmã Scheilla também se manifestam e orientam.
O Cenáculo Espírita Thiago Maior foi local das primeiras reuniões de diretoria do hospital, enquanto o terreno era adquirido, e logo após o Centro Oriente (p. 34) Juntou-se aos diretores um grupo ligado à União Espírita Mineira e a Chico Xavier: Peralva, Salvador Schembri, Osório Morais e Virgílio Almeida. Emmanuel, através do lápis do médium de Pedro Leopoldo, dá diversas orientações para o futuro hospital que vão sendo publicadas em boletins e mensagens, lidos em reuniões de diretoria. Os Espíritos Joseph Gleber e Irmã Scheilla também se manifestam e orientam.
Sergito de Souza Cavalcanti, professor aposentado da Escola de Veterinária da UFMG, publicou agora em agosto de 2018 o livro “Oriente de Luz”, que trata especificamente do Grupo Scheilla, mas de forma geral do movimento da fraternidade em Belo Horizonte. Sergito apresenta em linguagem simples e direta os trabalhos realizados pelo Grupo Scheilla e o Centro Espírita André Luiz, com estatísticas entremeadas por histórias de fundadores e trabalhadores.
Jair, Ênio, Dante são alguns dos trabalhadores que participam também do HEAL. Em alguns momentos, há conexões entre os dois livros de instituições diferentes, mas com partilha de trabalhadores.
Por fim, alguns dos personagens da capital mineira surgem novamente no nosso Conversando com os espíritos. Virgílio Almeida, Ysnard Machado Ennes, Oswaldo e Honório Abreu, presentes no HEAL, estão novamente sendo lembrados pelos seus trabalhos, uns no Grupo Emmanuel e outros na Associação Espírita Célia Xavier.
Um tanto negligenciada, pelo desejo dos trabalhadores de ficarem anônimos enquanto encarnados, a memória vai sendo resgatada de forma ainda amadora, mas relevante para a compreensão das organizações que formam o movimento espírita nas Minas Gerais. Tomara que outras iniciativas, com documentos, registros em jornais e método de história oral, continuem resgatando a memória do Lete do esquecimento, dando sentido e significado às ações empreendidas no passado e herdadas no presente pelos trabalhadores espíritas.
14.11.18
TRABALHOS DO 14 ENLIHPE PUBLICADOS NO YOUTUBE
Abaixo estão as exposições de trabalhos do 14o. ENLIHPE e seus respectivos links para o youtube.
Mesa de Abertura -
Humberto Schubert Coelho - A importância da fundamentação transcendental e idealista para a ideia de importalidade do espírito.
Marco Milani e Samuel Magalhães - Mesa de debates: A Gênese
Homenagem a Alfred Russel Wallace
Raphael Vivacqua Carneiro - Evocação de pessoas falecidas utilizando a prece e a varredura medianímica
Leandro Santos Franco de Aguiar - Mediunidade e sobrevivência: um século de investigações: a contribuição de Alan Gauld para o estudo da imortalidade
Luiz Fernando Bandeira de Melo - A sobrevivência da alma e o progresso moral em Sócrates
Elton Rodrigues - Ensaio sobre as anotações do Dr. Kerner com respeito aos fenômenos psíquicos da Sra. Frederica hauffe
Eric Vinícius Ávila Pires - Cesare Lombroso: da biografia à transição paradigmática
10.11.18
A CIÊNCIA COMO EMPREENDIMENTO COLETIVO
Uma das propostas que vou tentar realizar no Espiritismo Comentado é a discussão da dimensão científica do espiritismo. Antes disso, temos que entrar em um entendimento comum sobre: "o que é ciência?"
Um dos primeiros temas a se discutir é que a ciência é um empreendimento coletivo, articulado e falível. Penso são adjetivos de ampla aceitação pela comunidade científica, e que nos possibilita discutir algumas concepções muito equivocadas que as pessoas em geral têm do conceito de ciência. Vou falar um pouco das chamadas ciências naturais.
Ao contrário do que se imagina, quando se vê um grande cientista como Einstein ou Pasteur, a ciência não é fruto de uma grande inteligência individual que teve uma espécie de “iluminação” que revoluciona o que se sabia antes. Thomas Edison dizia que “a genialidade é 99% de transpiração”, ou seja, muito trabalho duro, muita leitura e estudo, para, ao final, conseguir um momento de inspiração.
O cientista, portanto, lê o que outros cientistas publicam. Ele passa muitas horas estudando um tema antes de poder escrever sobre ele. É o que se chama de “estado da arte”, “revisão bibliográfica”, “revisão sistemática”, com pequenas diferenças entre essas expressões.
Quando se vai escrever um artigo, para comunicar alguma coisa, normalmente se lê o que foi escrito nos últimos cinco anos sobre o tema (esse tempo é variável), sem contar os anos de estudo de um especialista sobre os conhecimentos da sua área para ser considerado como tal.
Hoje isso é bem mais complicado, porque há milhares de cientistas trabalhando ao redor do mundo, e cada vez surgem mais revistas especializadas. As publicações têm sido feitas em inglês, principalmente, que acabou sendo considerado o idioma mais dominado pelos cientistas, pelo menos ocidentais.
Suponha que o tema em estudo seja a “reencarnação”, como o fizemos há alguns anos no Encontro Nacional da LIHPE. O que se escreveu sobre reencarnação em revistas científicas analisadas por pares? Por incrível que pareça, ao contrário do que se pensa, há muita coisa sendo escrita e produzida sobre esse tema, com métodos aceitos pelos cientistas, e publicado. A velha afirmação que os cientistas não estudam reencarnação e não aceitam que se estude o tema não se sustenta, embora seja válida para muitos que consideram o tema metafísico.
Essa revisão não visa apenas ao conhecimento dos fatos registrados, por exemplo, crianças que se lembram de ter vivido anteriormente, mas também de todas as explicações possíveis para esse fato, após constatado, que é o que se chama de teoria científica. A análise das teorias, o jogo de aceitação e refutação das explicações existentes e a formulação final, após todos esses estudos, é o que se chama de conhecimento científico.
Obviamente, após anos de trabalho e publicação, alguns cientistas se tornam notáveis por todas as contribuições que deram às suas áreas. Alguns são até considerados gênios, porque conseguiram uma nova e melhor forma de explicar um conjunto de fatos que não era percebido por seus pares. Obviamente, são inteligentes, mas não chegaram lá apenas por serem inteligentes, mas por terem feito seus 99% de esforço, lendo, observando, experimentando, escrevendo, reescrevendo, criticando o que existe e não está bem elaborado, identificando falhas nos estudos já realizados, entre outras atividades.
Mas a ciência é falível? Não é a verdade? Isso fica para outro post.
8.11.18
ESPIRITISMO: CIÊNCIA NATURAL OU FILOSOFIA?
Em uma das palestras que fiz recentemente, surgiu uma questão interessante sobre o status epistemológico do espiritismo. Não dava para desenvolver a questão nas condições em que nos encontrávamos, então deixei para tratar aqui, no Espiritismo Comentado.
Meu interlocutor via, de um lado as ciências (entendidas como as ciências naturais) e de outro a filosofia (com suas subáreas tradicionais, menos a psicologia). Ele argumentava que o espiritismo devia tender, portanto, para a filosofia, que possivelmente teria um poder explicativo melhor.
Contudo, na universidade contemporânea, entre a filosofia e as ciências naturais encontram-se as ciências humanas e sociais. São áreas de conhecimento desenvolvidas geralmente a partir do século XIX, que estudam o homem, sua cultura, suas organizações e sociedade.
No princípio, as ciências humanas tentaram empregar métodos das ciências naturais para esses estudos, como se pode ver em Durkheim (ciências sociais), os autores estruturalistas e funcionalistas (psicologia), entre outros. Como os avanços fossem modestos e contraditórios, diferentemente da física, por exemplo, logo se viu que o objeto de estudo desses cientistas era capaz de se modificar, o que ele fazia através da linguagem.
Por esse motivo, as ciências humanas avançaram (para alguns cientistas não), e englobaram métodos de estudo de base hermenêutica e fenomenológica, que consideram a apreensão do significado da linguagem humana e suas consequências, entre outras contribuições que hoje se costuma chamar de métodos qualitativos, e que vão além da observação. Autores com De Bruyne, denominam essa abordagem como abordagem da compreensão (que envolve uma busca rigorosa do significado do que fala o sujeito e suas implicações), em oposição à abordagem da explicação, das ciências naturais (que envolvem, leis, descritas matematicamente, de forma exata ou probabilística, explicando eventos que seguem a regularidade matemática encontrada).
Allan Kardec desde o princípio de seus estudos, percebeu que o método das ciências naturais era insuficiente para obter respostas para as questões investigativas que tinha a propor para as “inteligências desencarnadas”. Ele manteve o indutivismo das ciências naturais, mas percebeu que como os espíritos tinham diferentes capacidades de descrever o mundo em que viviam, era necessário classificá-los, o que fez com a escala espírita, para estudar apenas os relatos dos espíritos superiores.
Outra coisa que ele fez, muito semelhante à pesquisa fenomenológica, que só foi estabelecida anos depois, foi buscar na narrativa dos espíritos superiores, aquilo que lhes era comum. Ele denominou seu método, na introdução de O Evangelho Segundo o Espiritismo, de “controle universal do ensino dos espíritos”. Com isso, ele buscava conteúdos semelhantes através de médiuns diferentes, de preferência os que desconheciam as contribuições dadas pelos demais, como forma de controle da interferência do médium na comunicação. Em fenomenologia, isso se chama “redução fenomenológica”. Outro ponto do método de Kardec era evitar ideias pré-concebidas e ater-se aos conteúdos colhidos. Em fenomenologia isso se chama “suspensão de juízo”.
O mestre francês sempre analisava o conteúdo do que lhe era dito de forma compreensiva (o que significa o que o espírito disse? Está de acordo com os demais espíritos superiores? Faz sentido?) e utilizava a razão como forma de análise e comparação.
Em um artigo já publicado, desenvolvemos mais esse ponto de vista. Está no livro “O espiritismo, as ciências e a filosofia”, publicado pela parceria CCDPE-ECM e LIHPE, e é intitulado “Espiritismo e métodos de pesquisa em ciências hermenêuticas e fenomenológicas”.
Se aceita essa argumentação, entendemos que do ponto de vista metodológico e epistemológico, há conhecimentos no corpo da doutrina espírita que se desenvolveram com base na observação e experimentação (ciências naturais), há outros conhecimentos que são fruto da argumentação racional (filosofia), mas boas parte do corpo doutrinário repousa em uma análise fenomenológica daquilo que os espíritos disseram aos estudiosos do século XIX e que foi analisado por Allan Kardec (métodos qualitativos de ciências humanas). Boa parte da ética espírita tem uma dupla origem como conhecimento: os relatos da vida após a morte e das consequências das ações em vida (análise fenomenológica de Kardec), e a análise da ética cristã como referência ética para a humanidade (o que constitui parte do aspecto religioso do espiritismo, considerando-se, contudo, que Kardec busca uma fé raciocinada, ou seja, com contribuições dos métodos filosóficos, e não apenas uma “fé cega”)
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