Espiritismo é uma Religião?(1)
Todas as reuniões religiosas, seja qual for o culto a que
pertençam, são fundadas na comunhão de pensamentos;
com efeito, é aí que podem e devem exercer a sua força,
porque o objetivo deve ser a libertação do pensamento das
amarras da matéria. Infelizmente, a maioria se afasta deste
princípio à medida que a religião se torna uma questão de
forma. Disto resulta que cada um, fazendo seu dever
consistir na realização da forma, se julga quites com Deus
e com os homens, desde que praticou uma fórmula.
Resulta ainda que cada um vai aos lugares de reuniões
religiosas com um pensamento pessoal, por sua própria
conta e, na maioria das vezes, sem nenhum sentimento
de confraternidade em relação aos outros assistentes; fica
isolado em meio à multidão e só pensa no céu para si
mesmo.
Por certo não era assim que o entendia Jesus, ao dizer:
“Quando duas ou mais pessoas estiverem reunidas em meu
nome, aí estarei entre elas”. Reunidos em meu nome, isto é,
com um pensamento comum; mas não se pode estar
reunido em nome de Jesus sem assimilar os seus
princípios, sua doutrina. Ora, qual é o princípio fundamental
da doutrina de Jesus? A caridade em pensamentos,
palavras e ações. Mentem os egoístas e os orgulhosos,
quando se dizem reunidos em nome de Jesus, porque
Jesus não os conhece por seus discípulos.
Chocados por esses abusos e desvios, há pessoas que
negam a utilidade das assembléias religiosas e, em
conseqüência, a das edificações consagradas a tais
assembléias. Em seu radicalismo, pensam que seria melhor
construir asilos do que templos, uma vez que o templo de
Deus está em toda parte e em toda parte pode ser adorado;
que cada um pode orar em casa e a qualquer hora,
enquanto os pobres, os doentes e os enfermos necessitam
de lugar de refúgio.
Mas, porque cometeram abusos, porque se afastaram do
reto caminho, devemos concluir que não existe o reto
caminho e que tudo quanto se abusa seja mau? Não,
certamente. Falar assim é desconhecer a fonte e os
benefícios da comunhão de pensamentos, que deve ser a
essência das assembléias religiosas; é ignorar as causas
que a provocam. Concebe-se que os materialistas
professem semelhantes idéias, já que em tudo fazem
abstração da vida espiritual; mas da parte dos espiritualistas
e, melhor ainda, dos espíritas, seria um contra-senso. O
isolamento religioso, assim como o isolamento social,
conduz ao egoísmo. Que alguns homens sejam bastante
fortes por si mesmos, largamente dotados pelo coração,
para que sua fé e caridade não necessitem ser revigoradas
num foco comum, é possível; mas não é assim com as
massas, por lhes faltar um estimulante, sem o qual poderiam
se deixar levar pela indiferença. Além disso, qual o homem
que poderá dizer-se bastante esclarecido para nada ter a
aprender no tocante aos seus interesses futuros? Bastante
perfeito para abrir mão dos conselhos da vida presente?
Será sempre capaz de instruir-se por si mesmo? Não; a
maioria necessita de ensinamentos diretos em matéria de
religião e de moral, como em matéria de
ciência.Incontestavelmente, tais ensinos podem ser dados
em toda parte, sob a abóbada do céu, como sob a de um
templo; mas por que os homens não haveriam de ter lugares
especiais para as questões celestes, como os têm para as
terrenas? Por que não teriam assembléias religiosas, como
têm assembléias políticas, científicas e industriais? Aqui
está uma bolsa onde se ganha sempre. Isto não impede as
edificações em proveito dos infelizes. Dizemos, ademais,
que haverá menos gente nos asilos, quando os homens
compreenderem melhor seus interesses do céu.
Se as assembléias religiosas – falo em geral, sem aludir a
nenhum culto – muitas vezes se têm afastado de seu
objetivo primitivo principal, que é a comunhão fraterna do
pensamento; se o ensino ali ministrado nem sempre tem
acompanhado o movimento progressivo da Humanidade, é
que os homens não progridem todos ao mesmo tempo. O
que não fazem num período, fazem em outro; à proporção
que se esclarecem, vêem as lacunas existentes em suas
instituições, e as preenchem; compreendem que o que era
bom numa época, em relação ao grau de civilização, torna-
se insuficiente numa etapa mais avançada, e restabelecem
o nível. Sabemos que o Espiritismo é a grande alavanca do
progresso em todas as coisas; marca uma era de
renovação. Saibamos, pois, esperar, não exigindo de uma
época mais do que ela pode dar. Como as plantas, é
preciso que as idéias amadureçam, para que seus frutos
sejam colhidos. Saibamos, além disso, fazer as necessárias
concessões às épocas de transição, porque na Natureza
nada se opera de maneira brusca e instantânea.
Dissemos que o verdadeiro objetivo das assembléias
religiosas deve ser a comunhão de pensamentos; é que,
com efeito, a palavra religião quer dizer laço. Uma religião,
em sua acepção larga e verdadeira, é um laço que religa os
homens numa comunhão de sentimentos, de princípios e de
crenças; consecutivamente, esse nome foi dado a esses
mesmos princípios codificados e formulados em dogmas
ou artigos de fé. É nesse sentido que se diz: a religião
política; entretanto, mesmo nesta acepção, a palavra religião
não é sinônima de opinião; implica uma idéia particular: a de
fé conscienciosa; eis por que se diz também: a fé política.
Ora, os homens podem filiar-se, por interesse, a um partido,
sem ter fé nesse partido, e a prova é que o deixam sem
escrúpulo, quando encontram seu interesse alhures, ao
passo que aquele que o abraça por convicção é inabalável;
persiste à custa dos maiores sacrifícios, e é a abnegação
dos interesses pessoais a verdadeira pedra de toque da fé
sincera. Todavia, se a renúncia a uma opinião, motivada pelo
interesse, é um ato de desprezível covardia, é, não
obstante, respeitável, quando fruto do reconhecimento do
erro em que se estava; é, então, um ato de abnegação e de
razão. Há mais coragem e grandeza em reconhecer
abertamente que se enganou, do que persistir, por amor-
próprio, no que se sabe ser falso, e para não se dar um
desmentido a si próprio, o que acusa mais obstinação do
que firmeza, mais orgulho do que razão, e mais fraqueza do
que força. É mais ainda: é hipocrisia, porque se quer
parecer o que não se é; além disso é uma ação má, porque é encorajar o erro por seu próprio exemplo.
O laço estabelecido por uma religião, seja qual for o seu
objetivo, é, pois, essencialmente moral, que liga os
corações, que identifica os pensamentos, as aspirações, e
não somente o fato de compromissos materiais, que se
rompem à vontade, ou da realização de fórmulas que falam
mais aos olhos do que ao espírito. O efeito desse laço
moral é o de estabelecer entre os que ele une, como
conseqüência da comunhão de vistas e de sentimentos, a
fraternidade e a solidariedade, a indulgência e a
benevolência mútuas. É nesse sentido que também se diz: a
religião da amizade, a religião da família.
Se é assim, perguntarão, então o Espiritismo é uma
religião? Ora, sim, sem dúvida, senhores! No sentido
filosófico, o Espiritismo é uma religião, e nós nos
vangloriamos por isto, porque é a Doutrina que funda os
vínculos da fraternidade e da comunhão de pensamentos,
não sobre uma simples convenção, mas sobre bases mais
sólidas: as próprias leis da Natureza.
Por que, então, temos declarado que o Espiritismo não é
uma religião? Em razão de não haver senão uma palavra
para exprimir duas idéias diferentes, e que, na opinião geral,
a palavra religião é inseparável da de culto; porque desperta
exclusivamente uma idéia de forma, que o Espiritismo não
tem. Se o Espiritismo se dissesse uma religião, o público
não veria aí mais que uma nova edição, uma variante, se se
quiser, dos princípios absolutos em matéria de fé; uma
casta sacerdotal com seu cortejo de hierarquias, de
cerimônias e de privilégios; não o separaria das idéias de
misticismo e dos abusos contra os quais tantas vezes a
opinião se levantou.
Não tendo o Espiritismo nenhum dos caracteres de uma
religião, na acepção usual da palavra, não podia nem devia
enfeitar-se com um título sobre cujo valor inevitavelmente se
teria equivocado. Eis porque simplesmente se diz: Doutrina
filosófica e moral.
As reuniões espíritas podem, pois, ser feitas
religiosamente, isto é, com o recolhimento e o respeito que
comporta a natureza grave dos assuntos de que se ocupa;
pode-se mesmo, na ocasião, aí fazer preces que, em vez
de serem ditas em particular, são ditas em comum, sem
que, por isto, sejam tomadas por assembléias religiosas.
Não se pense que isto seja um jogo de palavras; a nuança é
perfeitamente clara, e a aparente confusão não provém
senão da falta de uma palavra para cada idéia.
Qual é, pois, o laço que deve existir entre os espíritas? Eles
não estão unidos entre si por nenhum contrato material, por
nenhuma prática obrigatória. Qual o sentimento no qual se
deve confundir todos os pensamentos? É um sentimento
todo moral, todo espiritual, todo humanitário: o da caridade
para com todos ou, em outras palavras: o amor do próximo,
que compreende os vivos e os mortos, pois sabemos que
os mortos sempre fazem parte da Humanidade.
A caridade é a alma do Espiritismo; ela resume todos os
deveres do homem para consigo mesmo e para com os
seus semelhantes, razão por que se pode dizer que não há
verdadeiro espírita sem caridade.
Mas a caridade é ainda uma dessas palavras de sentido
múltiplo, cujo inteiro alcance deve ser bem compreendido; e
se os Espíritos não cessam de pregá-la e defini-la, é que,
provavelmente, reconhecem que isto ainda é necessário.
O campo da caridade é muito vasto; compreende duas
grandes divisões que, em falta de termos especiais, podem
designar-se pelas expressões caridade beneficente e
caridade benevolente. Compreende-se facilmente a
primeira, que é naturalmente proporcional aos recursos
materiais de que se dispõe; mas a segunda está ao alcance
de todos, do mais pobre como do mais rico. Se a
beneficência é forçosamente limitada, nada além da vontade
poderia estabelecer limites à benevolência.
O que é preciso, então, para praticar a caridade
benevolente? Amar ao próximo como a si mesmo. Ora, se
se amar ao próximo tanto quanto a si, amar-se-o-á muito;
agir-se-á para com outrem como se quereria que os outros
agissem para conosco; não se quererá nem se fará mal a
ninguém, porque não quereríamos que no-lo fizessem.
Amar ao próximo é, pois, abjurar todo sentimento de ódio,
de animosidade, de rancor, de inveja, de ciúme, de
vingança, numa palavra, todo desejo e todo pensamento de
prejudicar; é perdoar aos inimigos e retribuir o mal com o
bem; é ser indulgente para as imperfeições de seus
semelhantes e não procurar o argueiro no olho do vizinho,
quando não se vê a trave no seu; é esconder ou desculpar
as faltas alheias, em vez de se comprazer em as pôr em
relevo, por espírito de maledicência; é ainda não se fazer
valer à custa dos outros; não procurar esmagar ninguém sob
o peso de sua superioridade; não desprezar ninguém pelo
orgulho. Eis a verdadeira caridade benevolente, a caridade
prática, sem a qual a caridade é palavra vã; é a caridade do
verdadeiro espírita, como do verdadeiro cristão; aquela sem
a qual aquele que diz: Fora da caridade não há salvação,
pronuncia sua própria condenação, tanto neste quanto no
outro mundo.
Quantas coisas haveria a dizer sobre este assunto! Que
belas instruções não nos dão os Espíritos incessantemente!
Não fosse o receio de alongar-me em demasia e de abusar
de vossa paciência, senhores, seria fácil demonstrar que,
em se colocando no ponto de vista do interesse pessoal,
egoísta, se se quiser, porque nem todos os homens estão
ainda maduros para uma completa abnegação, para fazer o
bem unicamente por amor do bem, digo que seria fácil
demonstrar que têm tudo a ganhar em agir deste modo, e
tudo a perder agindo diversamente, mesmo em suas
relações sociais; depois, o bem atrai o bem e a proteção
dos bons Espíritos; o mal atrai o mal e abre a porta à
malevolência dos maus. Mais cedo ou mais tarde o
orgulhoso será castigado pela humilhação, o ambicioso
pelas decepções, o egoísta pela ruína de suas esperanças,
o hipócrita pela vergonha de ser desmascarado; aquele que
abandona os bons Espíritos por estes é abandonado e, de
queda em queda, finalmente se vê no fundo do abismo, ao
passo que os bons Espíritos erguem e amparam aquele
que, nas maiores provações, não deixa de se confiar à
Providência e jamais se desvia do reto caminho; aquele,
enfim, cujos secretos sentimentos não dissimulam nenhum
pensamento oculto de vaidade ou de interesse pessoal.
Assim, de um lado, ganho assegurado; do outro, perda
certa; cada um, em virtude do seu livre-arbítrio, pode
escolher a sorte que quer correr, mas não poderá queixar-se
senão de si mesmo pelas conseqüências de sua escolha.
Crer num Deus Todo-Poderoso, soberanamente justo e
bom; crer na alma e em sua imortalidade; na preexistência
da alma como única justificação do presente; na pluralidade
das existências como meio de expiação, de reparação e de
adiantamento intelectual e moral; na perfectibilidade dos
seres mais imperfeitos; na felicidade crescente com a
perfeição; na equitativa remuneração do bem e do mal,
segundo o princípio: a cada um segundo as suas obras; na
igualdade da justiça para todos, sem exceções, favores nem
privilégios para nenhuma criatura; na duração da expiação
limitada à da imperfeição; no livre-arbítrio do homem, que
lhe deixa sempre a escolha entre o bem e o mal; crer na
continuidade das relações entre o mundo visível e o mundo
invisível; na solidariedade que religa todos os seres
passados, presentes e futuros, encarnados e
desencarnados; considerar a vida terrestre como transitória
e uma das fases da vida do Espírito, que é eterno; aceitar
corajosamente as provações, em vista de um futuro mais
invejável que o presente; praticar a caridade em
pensamento, em palavras e obras na mais larga acepção do
termo; esforçar-se cada dia para ser melhor que na véspera,
extirpando toda imperfeição de sua alma; submeter todas as
crenças ao controle do livre exame e da razão, e nada
aceitar pela fé cega; respeitar todas as crenças sinceras,
por mais irracionais que nos pareçam, e não violentar a
consciência de ninguém; ver, enfim, nas descobertas da
Ciências, a revelação das leis da Natureza, que são as leis
de Deus: eis o Credo, a religião do Espiritismo, religião que
pode conciliar-se com todos os cultos, isto é, com todas as
maneiras de adorar a Deus. É o laço que deve unir todos os
espíritas numa santa comunhão de pensamentos,
esperando que ligue todos os homens sob a bandeira da
fraternidade universal.
Com a fraternidade, filha da caridade, os homens viverão em
paz e se pouparão males inumeráveis, que nascem da
discórdia, por sua vez filha do orgulho, do egoísmo, da
ambição, da inveja e de todas as imperfeições da
Humanidade.
O Espiritismo dá aos homens tudo o que é preciso para a
sua felicidade aqui na Terra, porque lhes ensina a se
contentarem com o que têm. Que os espíritos sejam, pois,
os primeiros a aproveitar os benefícios que ele traz, e que
inaugurem entre si o reino da harmonia, que resplandecerá
nas gerações futuras.
Os Espíritos que nos cercam aqui são inumeráveis, atraídos
pelo objetivo que nos propusemos ao nos reunirmos, a fim
de dar aos nossos pensamentos a força que nasce da
união. Ofereçamos aos que nos são caros uma boa
lembrança e o penhor de nossa afeição, encorajamentos e
consolações aos que deles necessitem. Façamos de modo
que cada um recolha a sua parte dos sentimentos de
caridade benevolente, de que estivermos animados, e que
esta reunião dê os frutos que todos têm o direito de esperar.
(1)N. do T.: A resposta a esta pergunta foi dada por Allan Kardec na Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, em 1º de novembro
de 1868, na Sessão Anual Comemorativa dos Mortos. Apenas transcrevemos o trecho diretamente relacionado com o tema: “O
Espiritismo é uma religião?”. O artigo integral está na Revista Espírita de dezembro de 1868, 1ª ed. Rio de Janeiro: FEB, 2005, p.483-495.
Allan Kardec
(Revista Espírita, Dezembro de 1868, ED. FEB, P. 487-495)
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